Clonagem
Por João Ramalho Santos
A receita é conhecida: quando as ideias não abundam, nada melhor do que requentar velhos conceitos e personagens, por vezes com modificações extremas, mas quase nunca definitivas. Na BD esse tipo de revisitação tem envolvido diversos géneros, mas sempre com maior ênfase no reino dos superheróis (onde a desconstrução cíclica é regra). Assim foi com “Superman” (morte-ressureição-casamento-mudança de uniforme) ou “Spiderman” (substituído por um clone-que-afinal-o-não-era numa das mais ridículas histórias de que há memória). Também na Europa surgem exemplos, desde os novos “Alix”, “Lefranc”, “Jonathan” (anunciado), a “Spirou” e “Lucky Luke” em versão “normal” e “juvenil” (com as aventuras dos heróis enquanto crianças). Mas o evento mais mediático (sublinhado por uma excelente exposição em Angoulême, que estará na Amadora) terá sido a reapropriação da série “Blake & Mortimer”, o clássico de Edgar Pierre Jacobs, pela dupla Jean Van Hamme (argumento) e Ted Benoit (desenho). O álbum, uma megaprodução da editora Dargaud, intitula-se “O Caso Francis Blake”, e foi lançado entre nós pela Meribérica.
Pegar numa obra conhecida e promover versões de outros criadores não é novo, e acontece agora também com o fundamental “The Spirit” do norte-americano Will Eisner, revisitado por autores como Frank Miller, Neil Gaiman, Alan Moore ou Dave Gibbons entre muitos outros (edição Kitchen Sink). É útil esclarecer que, se “The Spirit” era um produto de um autor visionário, nele trabalharam vários assistentes. Mas, e isto não é discutido por ninguém de bom senso, do mesmo modo que “Tintin” “é” Hergé e “Corto Maltese” “é” Pratt, “The Spirit” “é” Will Eisner. Diverso é, por exemplo, o conceito de “Grendel Tales” (criação de Matt Wagner), onde diversos autores fazem uma leitura pessoal da ideia de um ser guerreiro que tanto pode corporizar o mal absoluto como uma força de mudança. Dir-se-à que muitas personagens sempre foram trabalhadas por uma miríade de autores, como os já mencionados superheróis. Mas quantas boas histórias de superheróis se podem citar sem cair no ridículo dos “geeky fanboys”? Poucas, e todas produto de talentos que souberam superar (ou reinventar) modelos anteriores. Por outro lado, personagens houve que, apesar de tratadas por vários nomes, ficaram marcadas por um só (como o “Spirou” de Franquin).
Mas estas são situações algo diversas. Porque o pressuposto de “O Caso Francis Blake” foi, desde o início, reconstruir camaleonicamente o universo de Jacobs, nunca utilizá-lo como ponto de partida para outras descobertas (falar da presença de uma personagem feminina no misógino mundo de “Blake & Mortimer”, ou da morte “real” de um dos figurantes, como “inovações” é patético). Produto de inúmeras reuniões entre autores e responsáveis editoriais, este álbum foi elaboradamente construído, desde o argumento (com as “repetições” entre texto e desenho, tão características do original), ao traço que não é de facto de Ted Benoit, tanta é a perfeição mimética. Tendo como referência “The 39 Steps” (o livro de John Buchan para Van Hamme, o filme de Hitchcock para Benoit), “O Caso” é uma eficaz narrativa de espionagem que privilegia o uso da paisagem escocesa (bem como da muitas vezes negligenciada personagem de Blake), em detrimento dos habituais “gadgets” “científicos”. De resto, do voluntarismo de Mortimer ao vilão Olrik, passando pelos “God Save the Queen” finais, está lá tudo quanto é jacobsiano, e, por vezes, mesmo com vantagens.
Não está pois em causa que “O Caso Francis Blake” é, do ponto de vista formal, um bom álbum; tal como não se duvida que a revisitação de “The Spirit” será muito superior à média do “comic”. Mas o que importa é antes que “O Caso” não é o melhor álbum de Van Hamme ou Benoit (é apenas uma boa falsificação, um bom álbum que Jacobs não fez), ou que as histórias de “The Spirit” não serão marcos decisivos nas carreiras de Miller ou Gaiman. Porque essa é a natureza das homenagens directas, camaleónicas ou não. Mais vale, por isso, visitar estes criadores nos seus universos pessoais, uma vez que não há maior tributo a Jacobs (e Hergé) do que ver como a sua obra sobrevive no trabalho de Chaland, Floc’h (a primeira escolha para “O Caso”), Serge Clerc, António Jorge Gonçalves, Daniel Torres ou... Van Hamme e Ted Benoit (embora este até prefira Hergé...). É que chamar “homenagem” a uma operação financeira mal disfarçada (consulte-se a argumentação desculpabilizante da Dargaud, em www.dargaud.fr; ou veja-se o mercenarismo, louvavelmente honesto, que Benoit cultiva) é uma péssima anedota. Equivalente a “continuar” a obra de criadores desaparecidos “tal como eles” teriam pintado, escrito, filmado, representado. Um contra-senso? Não para uma forma de arte em perpétua hesitação. Mas vibrante, apesar de tudo.
O regresso dos heróis? O regresso dos mortos-vivos? Apenas uma inescapável lógica de mercado? Um balão de oxigénio para a BD franco belga (“O Caso” foi um enorme “bestseller”)? Um bom álbum de leitura agradável? Tudo isto, e nada disto? Aprecie-se “O Caso Francis Blake” como se quiser, mas é bom não esquecer a lógica que lhe está subjacente. Porque este poderá (deverá) ser apenas o primeiro exemplo de uma tendência. E nem todas as “homenagens” futuras terão a qualidade formal da de Benoit e Van Hamme.
P.S.- Não há nesta análise quaisquer assomos puristas perante um eventual “enxovalho” feito a Jacobs, de resto uma referência menos incontestável do que Hergé. Até porque não houve qualquer desrespeito ao criador (que deixou expressa, ao contrário de Hergé, a possibilidade de os seus heróis “ressuscitarem” noutras mãos). Na verdade, o trabalho de Van Hamme e Benoit é muito superior ao de Bob de Moor, que completou “As Três Fórmulas do Professor Sato”. Há apenas uma sensação de passadismo, da recuperação de lugares comuns ultrapassados. Celebrem-se os clássicos, mas evitem-se os clones, passe-se adiante.
Copyright: © 1997 JL; João Ramalho Santos
Fonte: http://www.bedeteca.com/index.php?pageID=recortes&recortesID=289
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